sábado, 14 de janeiro de 2023

Tática e revolução: uma análise política dos Piquetes e dos Black Blocs * ELAINE AMORIM y SANTIANE ARIAS.UBA

Tática e revolução: uma análise política dos Piquetes e dos Black Blocs

ELAINE AMORIM y SANTIANE ARIAS
XI Jornadas de Sociología. Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2015.

Cita:
ELAINE AMORIM y SANTIANE ARIAS (2015). Tática e revolução: uma análise política dos Piquetes e dos Black Blocs. XI Jornadas de Sociología. Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires.

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Tática e revolução: uma análise política dos Piquetes e dos Black Blocs

Elaine Amorim (UNICAMP ) e-mail: amorim_elaine@ig.com.br
Santiane Arias (UNICAMP) e-mail: santiane@gmail.com

Resumo:

O objetivo dessa comunicação é discutir o caráter dos Blocos Negros (Black Blocs), difundidos no Brasil após as manifestações de junho de 2013, e dos piquetes, realizados a partir de meados dos anos 1990 à aurora dos 2000 pelos movimentos de desempregados na Argentina. Problematizaremos especialmente a relação entre essas práticas e a noção de ação direta, tomando como objeto de análise o método de atuação. Com isso, pretendemos contribuir para a análise de importantes questões sobre a participação contemporânea, especialmente àquelas que se referem às especificidades dessas formas de ação.

Palavras-chave: ação direta, piquetes, black-blocs, formas de ação, lutas sociais.

Introdução

Propomos discutir o caráter dos Blocos Negros, difundidos no Brasil após as manifestações de junho de 2013, e dos piquetes, realizados entre meados dos anos 1990 e início dos anos 2000 pelos movimentos de desempregados na Argentina, conhecidos popularmente como piqueteros. Pretendemos problematizar especialmente a relação entre essas práticas e a noção de ação direta. A escolha dos Black Blocs e dos piquetes como objeto de análise deve-se às particularidades apresentadas por essas duas formas de ação à cena política. Ambos colocam importantes questões sobre a participação contemporânea e trazem consigo muitas indefinições conceituais: tratar-se-iam de táticas de luta, performances de caráter estético ou parte de uma estratégia mais ampla de destruição de uma ordem social? Na atual conjuntura, essas práticas assumiriam um caráter político defensivo ou ofensivo? Contra quem ou o que são direcionadas e o que almejam? Propomos, nesse sentido, uma análise exploratória dos piquetes e dos black blocs, tomando como objeto de análise o método de

atuação. Para isso, fundamentando-nos em nossos estudos de doutorado sobre os movimentos de desempregados argentinos e o movimento altermundialista.

A ação direta


Uma forma de luta pode ser distinguida pelo seu caráter indireto ou direto. Se as ações indiretas correspondem aos conflitos mediados por mecanismos institucionais constituídos historicamente com o objetivo de controlá-los e regulá-los segundo as normas que regem a ordem social (Rebón; Antón, 2006), a definição da ação direta parece ser ainda um campo em disputa. No caso brasileiro essa disputa se tornou visível após as manifestações de junho de 2013, quando diversas ações passaram a ser caracterizadas como “diretas”, muitas vezes de modo impreciso. Daí a importância de resgatar brevemente a concepção original do termo elaborado, especialmente, no interior do pensamento anarquista como uma “teoria e método de luta” (Rebón, s/d).

A ação direta desde a sua origem foi muitas vezes mal interpretada por ter designado, quando usada pela primeira vez, em 1890, o “antônimo de ação política” (parlamentar). Surgida no interior do movimento sindical francês como uma reação às formas mais radicais de propaganda, a prática da ação direta significava “ação industrial”, em referência às greves, boicotes e sabotagens, consideradas como formas de preparação e ensaio para a revolução, mas que tinham também como objetivo imediato obter algum resultado concreto. A ação direta seria, então, coesa com a compreensão do uso de métodos libertários (meios) para o alcance de uma sociedade libertária (fins).

Na definição de Pierre Monatte (1998 [1907]), um dos expoentes do sindicalismo revolucionário, “(...) agir em seu próprio benefício, contar apenas com seu próprio esforço – isso é a ação direta”. Concepção que retomava o lema da Associação Internacional da Classe Operária (1864), qual seja: “A emancipação dos operários é tarefa dos próprios operários”. A ação direta teria, para Monatte, uma importância para a educação revolucionária do proletariado, considerado o agente da revolução, bem como para o sindicalismo.

Aos poucos a ação direta passou a ser confundida não só com atos de propaganda e com a desobediência civil, mas com qualquer forma de atividade pública que fosse contra a lei ou contra as regras aceitas constitucionalmente. Nos anos mais recentes ela foi associada, segundo Rebón (s/data), às formas de ação violenta, como se a desobediência à legalidade enquanto estratégia de confrontação pudesse constituir-se somente pela violência. Mas para

esse autor o elemento definidor do caráter direto encontra-se justamente na “transgressão de uma norma” e não no dano físico a pessoas ou coisas; ademais, a ação direta pode constituir- se não somente como um princípio político ou uma estratégia, mas igualmente como uma “tática pontual de confrontação”, empregada com o objetivo de resolver diretamente um problema ou de alcançar uma posição de força a fim de obter alguma resolução institucional.

Do debate sumariamente apresentado retemos, por ora, dois importantes elementos na caracterização de uma ação direta, quais sejam: a ausência de mediação, ou canais institucionais formais e a ideia de uma ação que visa um resultado concreto a partir do esforço e decisão do próprio agente. Ambos elementos estão interligados e podemos pensar, a partir deles, alguns exemplos, como: as ocupações e os acampamentos do MST e do MTST e a recuperação pelos trabalhadores de fábricas falidas. Existem, contudo, casos menos precisos e é importante inseri-los em seus determinados contextos para que possamos abordá-los de modo satisfatório. Entramos aqui, portanto, nos piquetes e os Black Blocs.

Os piquetes como método de luta dos desempregados

Na história das lutas operárias, o piquete esteve presente como um método de resistência e sob a forma de barricadas nas revoltas operárias francesas do século XIX. Na Argentina, a sua prática remete ao final do século XIX e consistia na interrupção dos acessos às fábricas e outros estabelecimentos por parte dos trabalhadores em defesa das greves (Benclowicz, 2013). Prática que teve uma continuidade nas lutas desencadeadas pelo setor rural e pelo movimento operário no início do século XX, bem como durante os conflitos travados entre os anos de 1960 e 1970 (Artese, 2011).

Esses registros contrapõem-se às leituras que ressaltaram a novidade dos piquetes praticados, a partir da década de 1990, como parte de novos “repertórios de ação coletiva”. Uma análise dos piquetes à luz do processo histórico dos conflitos sociais travados no país revela não apenas a sua relação com tradições de luta e de organização da classe trabalhadora argentina, mas também uma “continuidade histórica” (Benclowicz, 2013) em relação às formas de protesto.

Mas qual configuração os piquetes ou cortes de rutas assumiram em uma conjuntura econômica marcada pela destruição em massa dos postos de trabalho? De acordo com Benclowicz, nos municípios petroleiros o significado da palavra “piquete” sofreu um “deslocamento”, passando a ser utilizada para denominar “(...) os pontos nos quais se concentravam os manifestantes para bloquear a rodovia” (Benclowicz, 2013, p. 13). De fato, os piquetes que se massificaram caracterizaram-se especialmente pela interrupção das vias públicas, não se limitando ao bloqueio do acesso às plantas produtivas ou a uma barreira de contenção nos enfrentamentos com a polícia.

A análise etnográfica de Manzano (2009) sobre os piquetes realizados pelas duas maiores organizações de desempregados de Buenos Aires, demonstra que eles envolviam inúmeras técnicas de organização e controle. A organização espacial ocorria na escolha antecipada da região a ser bloqueada, geralmente próxima de locais com fácil acesso à água potável e sanitários; uma vez iniciado o piquete, os limites do espaço eram demarcados por pneus incendiados ou por uma barreira de contenção e proteção formada por membros responsáveis pela segurança do grupo. A manutenção do piquete dava-se por meio do abastecimento de água e alimentos, enquanto o controle da participação pelo monitoramento da quantidade de pessoas presentes e pelo sistema de revezamento ou substituição das mesmas por outros parentes que garantiam a continuidade da sua participação na ação. Essa descrição nos dá uma dimensão da dinâmica dos piquetes, embora esta pudesse variar de acordo com a duração da ação e fatores específicos do movimento convocante.

Mas era na especificidade dos impactos políticos e econômicos dos bloqueios que se encontrava a sua importância para as lutas dos desempregados. Em um contexto marcado pelo just in time e pela deslocalização da produção, no qual os transportes e as comunicações adquiriram cada vez mais importância para o processo de valorização do capital, ações que interrompessem a distribuição e a circulação dos produtos passaram a ter o potencial de afetar a concretização desse processo. Impedidos de paralisar o processo produtivo, parcelas da superpopulação relativa encontrou nesse método de luta a possibilidade de conformar uma nova relação de forças entre os seus movimentos e o Estado. Daí a importância estratégica dos piquetes para os movimentos de desempregados, na medida em que esse método de luta apresentava, além de um forte efeito imediato na mídia (Palomino et al., 2006), uma forte capacidade de enfrentamento e agressividade política.

Os manifestantes, ao ocupar ruas e rodovias impedindo a circulação do trânsito, pressionavam e interpelavam diretamente o Estado para as suas reivindicações, ao mesmo tempo em que demarcavam um terreno de luta ao politizar a questão do desemprego, evidenciando para toda a sociedade um problema que não era individual, mas fruto das relações de exploração capitalista. Se o ato de infringir a livre circulação era apresentado como ilegal, a legitimidade dos piquetes encontrava-se na visibilização de uma carência
objetiva – a garantia da própria sobrevivência. Os piquetes desafiavam a norma legal do direito de ir e vir, pautados no caráter legítimo de uma luta defensiva por condições elementares de vida. Nesse aspecto, encontramos aqui um elemento comum entre piquetes e blacks blocs: a crítica direcionada ao “direito burguês” expresso na igualdade formal de uso do espaço público.

Se a tensão entre legitimidade e legalidade é uma expressão da própria ação direta (Rebón, s/data), ela se manifestou nos piquetes. É significativo que, em defesa do caráter legítimo dessa forma de ação, algumas organizações de desempregados procuravam realizá-la distante de supermercados a fim de ressaltar a sua diferença em relação aos saques (Manzano, 2009), comumente compreendidos como delitos. Outra diferenciação que mostra essa tensão era a recusa por parte de alguns movimentos de cobrir os rostos (com lenços ou gorros) ou carregar paus e bastões durante os piquetes; procedimentos utilizados pelos setores mais combativos, particularmente os grupos autônomos, para não serem reconhecidos pelas forças policiais e defenderem-se nos casos de repressão. Não é por acaso que, em 2002, a estratégia de repressão do governo Eduardo Duhalde direcionou-se, de modo seletivo, sobre esses grupos, culminando no Massacre de Avellaneda.

As tensões aqui apontadas que se repercutiram em divisões no interior dos movimentos de desempregados demonstram que o caráter político dos instrumentos de luta não está dado a priori. Por isso a necessidade de examinar as formas de luta à luz da conjuntura econômica e política, bem como da correlação de forças existente. Os piquetes, colocados em prática pelos movimentos de desempregados em um contexto de destruição massiva dos empregos possibilitou, segundo Artese (2011, p.121), demarcar o “posicionamento territorial como medida de pressão mais efetiva”. Nesse caso, esse método de luta não se constituiu como um “recurso tático” tal como se viu nas lutas do final dos anos de 1960 e início de 1970, quando ele estava subordinado a um leque maior de tipos de ação (como as greves, as marchas e, inclusive, o enfrentamento armado). Essa característica assumida pelos piquetes revelaria, ainda, o seu caráter político defensivo nos anos mais recentes, justamente por estarem inseridos em uma série de “lutas defensivas”, quais sejam: pela inclusão no mercado de trabalho, por bens materiais necessários para a sobrevivência, pela melhoria das condições de vida.

Ao discutir as concepções de tática e estratégia em Lenin, Marta Harnecker (1985) argumenta que para esse autor a tática deve determinar as orientações concretas das formas de organização e dos métodos de luta a ser adotados em cada momento histórico: “(...) Cada vez que surge uma nova conjuntura política, esta [a tática] deve responder com formas de
organização e de luta apropriadas a essa nova situação”. Os piquetes, nesse sentido, antes de se constituírem em novos repertórios de luta, foram reconfigurados frente a uma nova correlação de forças desfavorável para a classe trabalhadora argentina.

Essa discussão nos remete à relação entre piquetes e ação direta cuja análise parece exigir, do mesmo modo, a compreensão de cada situação concreta na qual esse método de luta é posto em prática. Afinal, todo piquete pode ser considerado como uma forma de ação direta? Parece-nos que não há aqui necessariamente uma equivalência. Mas o que permitiria caracterizar como ação direta os bloqueios realizados pelos movimentos de desempregados argentinos nos anos mais recentes? Tal caracterização é apresentada, por Manzano (2009, p. 32), quando argumenta que “(...) o piquete representava uma ação direta para forçar o compromisso de autoridades governamentais”.

Nesse sentido, um dos elementos que ajudam a responder a essa questão relaciona-se com o fato desse método de luta não ter sido utilizado pontualmente, pois se ele correspondeu, em outros contextos históricos, a um dos recursos adotado por segmentos dos trabalhadores ocupados dentro de um conjunto maior de táticas, nos anos mais recentes, acabaram assumindo um papel preponderante como forma de resistência dos desempregados. Por meio dos bloqueios, forma de resistência que envolve um engajamento físico na ação e a permanência no espaço onde o conflito se trava, os desempregados conseguiram, em muitas ocasiões, obter pelos seus próprios esforços um resultado concreto para as suas demandas. Disso parece ter resultado a significativa difusão dos piquetes, que haviam se tornado a ação mais eficaz para as organizações de desempregados em suas lutas.

O Black Bloc como tática

Os Blacks Blocs têm chamado a atenção da imprensa. Embora uma novidade no Brasil, os blocos humanos começaram a ser utilizados sistematicamente, já com os rostos cobertos e trajando preto, no início dos anos 1980, na Alemanha. As suas primeiras atuações ocorreram no confronto com a polícia, em reação à ordem de despejo de um conhecido squat.

Na década de 1990 os Blocos Negros chegaram aos EUA e ao Canadá, alçando visibilidade internacional em 1999, durante os protestos em Seattle, onde estava previsto o encontro da Organização Mundial do Comércio. Conhecida como a Batalha de Seattle, esse conjunto de manifestações, caracterizado pela abrangência de coalizões e pelo confronto violento com a polícia, datou o nascimento do movimento altermundialista. A identidade
deste movimento foi tecida, em grande medida, a partir da confluência de entidades, indivíduos e organizações nas diversas manifestações de rua ao longo dos encontros dos organismos multilaterais. Paralelo ao ciclo de protestos, a atuação da polícia local e do serviço de inteligência nacional se tornava cada vez mais articulada, destacando o papel dos Black Blocs. No entanto, a relação entre os ativistas de preto e os altermundialistas é ambígua, sendo declarada a insatisfação de algumas organizações, seja com a suposta violência empreendida pelos blocos, seja pela imprevisibilidade da sua atuação.

Se ao longo dos anos 1980 os blocos se constituíam tendo como alvo o confronto com as forças da ordem, num segundo momento, no seio das manifestações altermundialistas, a atuação foi direcionada ao patrimônio identificado como símbolo do capital internacional (Dupuis-Déri, 2014). Nesse sentido, recebeu atenção privilegiada dos blackblokers: empresas multinacionais, bancos, redes de lojas de luxo e franquias de fast food.

No Brasil, o fenômeno altermundialista esteve particularmente associado à realização dos Fóruns Sociais Mundiais, os quais contaram com grandes marchas pacíficas e ordenadas apenas na abertura do evento, e a presença de jovens com símbolos anarquistas, com rostos cobertos e vestidos de preto não chegou a configurar blocos de defesa e enfrentamento. Em junho de 2013, durante as manifestações contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, e em 2014, em meio às críticas aos gastos públicos destinados à realização da Copa do Mundo, eis que os Blocos Negros entram em cena, assumindo certo protagonismo na cobertura da imprensa. Aqui, novamente, as críticas aos Black Blocs são formuladas não apenas por membros e organizações de direita, mas também pela esquerda. Nas palavras de Boulos (2014) do MTST,
(...) em relação aos black blocs: com todo o respeito que quem está na luta merece, somos críticos dessa tática. Achamos que ela não contribui para o acúmulo de forças e para o avanço das lutas populares. Quebrar um banco pode parecer muito radical, mas é muito fácil. Quebrar uma vitrine de banco, podemos sair daqui e quebrar. Isso não vai fazer do Santander ou do Bradesco mais pobres. Isso pode resolver meu problema psicológico, mas não radicalizar as lutas sociais. Vai isolar as lutas populares no país. Não concordamos com essa tática e não a aceitamos nas nossas manifestações. Não aceitamos que uma minoria queira impor ao MTST, um movimento organizado, nas manifestações puxadas pelo MTST, formas de luta que tiram da sua cartola sem discutir em nenhum espaço. Prezamos por definição coletiva.

Os integrantes dos blocos possuem múltiplas influências ideológicas. Independente da orientação, caracteriza especialmente o seu discurso, além da crítica à sociedade de consumo e à violência estatal, a ênfase na ruptura com o centralismo, a burocracia e a estrutura hierárquica das organizações da esquerda identificada como tradicional, leia-se, leninista. Nesse sentido, a exaltação à ação direta e à desobediência civil resgata, com particularidades, o debate de longa tradição entre libertários e marxistas. Com efeito, esse debate é atualizado. Enquanto a ação direta dos clássicos do anarquismo estava em boa medida pautada na atuação dos sindicatos operários e ancorada no conflito de classes, a ação direta dos blocos autônomos contemporâneos é marcada por forte dramatização, visando o olhar da opinião pública, sem atentar para uma mobilização direta dos trabalhadores. Assim, mesmo que seus rostos estejam encobertos, a prática só tem sentido se televisionada e amplamente difundida pelas redes sociais.

De acordo com François Depuis-Déri, os Black Blocs não são um movimento, mas uma tática pautada numa violência performática, e esta, diz o autor, envia uma mensagem: ao quebrar as vitrines, os ativistas atingem a imagem inquebrantável do capitalismo. Deste modo, prossegue Depuis-Déri, o objetivo principal dos blocos negros não é promover a violência em si, mas dar visibilidade à sua crítica e, se preciso, defender a integridade física dos manifestantes.

A legitimidade da ação está, para os ativistas, na sua concepção de propriedade privada, tida como uma das maiores violências contra o indivíduo. A cumplicidade entre Estado, propriedade e violência é, como na tradição anarquista, ressaltada; sendo que ao enfatizar os aspectos coercitivos do Estado, os blackblokers tende a esvaziar de significado os espaços de negociação e as esferas de representação. Esse esvaziamento, no entanto, não pode ser compreendido como uma atitude deliberada dos adeptos desta prática. Michel Wieviorka alerta para a mudança do caráter das diversas formas de manifestação de violência e a sua relação com os novos compromissos sociais firmados com o neoliberalismo. Por certo, essa mudança pode ser sentida ao longo do processo de recuo dos Estados de bem-estar e desmanche dos blocos socialistas, processo que, lembremos, a Alemanha vivenciou intensamente com a queda do Muro de Berlim, nos escombros dos quais emergiram os blackblokers.

A privatização das indústrias e dos serviços alteraram a posição dos agentes consolidada nos compromissos anteriores. Canais de diálogo relativamente instituídos foram fechados ou destituídos de poder decisório, de pressão ou negociação, com consequente marginalização e criminalização de grupos sociais e ações coletivas. Desde 2001, por exemplo, manifestantes altermundialistas podem ser enquadrados num artigo sobre terrorismo. Membros dos Black Blocs foram presos e indiciados pela Polícia Civil com base no artigo 288 do Código Penal,

por associação a organizações criminosas. É preciso destacar que a criminalização das organizações e movimentos, bem como a brutalidade policial cresce sempre de maneira seletiva. E a declaração de Boulos é, nesse sentido, um indicativo: “O MTST tem feito ocupações enormes em Brasília, mobilizado muita gente (...). Há uma atuação intensa (...) marcada por (...) ameaças de prisão, prisão, tentativa de homicídio de dirigentes...”

De acordo com Depuis-Déri, duas são as principais acusações endereçadas aos Black Blocs. À esquerda, a prática seria dotada de uma radicalidade estéril, ou seja, carente de proposições alternativas ao capitalismo. À direita, o recurso à violência ou à força física deslegitima a ação, negando a política – esta como sendo a esfera do diálogo, da resolução das diferenças e dos conflitos pelo princípio da maioria ou pelo consenso.

Para Depuis-Déri, as críticas não procedem. Contra a primeira advertência o autor alega: “O Black Bloc não é um tratado de filosofia política, muito menos uma estratégia. É uma tática. Uma tática não envolve relações de poder globais, nem tomadas de poder, tampouco tenta se livrar do poder e da dominação. Uma tática não envolve uma revolução global”. Essa constatação nos faz inquerir sobre o significado de uma tática sem estratégia e sem perspectivas futuras. Marta Harnecker (1985), retomando Lênin no esclarecimento da relação dialética entre tática e estratégia, afirma:

“Para ganhar uma guerra não basta a vontade, é necessário planejamento. Se chama estratégia a forma como se planejam, organizam e orientam os diversos combates para conseguir o objetivo fixado. Se chama tática as distintas operações que se executam concretamente para levar a cabo os combates de acordo com o plano estratégico geral (…). A relação entre o objetivo estratégico parcial e final e entre a estratégia e tática é uma relação entre o todo e a parte”.

Contra a segunda advertência, Depuis-Déri recoloca a disputa em torno do termo
política, até aqui monopolizado pela perspectiva liberal, segundo a qual a política estaria fundada sobre uma deliberação esclarecida (racional e razoável). Essa delimitação impede o reconhecimento da ação direta como capaz de influenciar o debate público, inserindo nele novas pautas e sujeitos. Assim, também o mito da irracionalidade da ação violenta reforça a incompatibilidade desta com o processo de deliberação, o que tem sido refutado por diversos estudos sociológicos, para os quais recurso à força é, muitas vezes, um meio eficaz de reconhecimento da causa de um movimento.

A análise da relação entre piquetes e Black Blocs como formas de ação direta exige, além de uma precisão conceitual, a inserção dessas práticas em seu contexto. Não há identificação abstrata imediata. Os bloqueios de rua realizados pelos piqueteros envolveram diretamente os desempregados numa luta política ampla, durante a qual os militantes reconstruíam suas identidades e formas de atuação. Enquanto no passado os piquetes foram um recurso a mais num leque amplo de táticas, recentemente eles assumiram um papel estratégico, forçando a atenção do Estado face às reivindicações dos desempregados. Muito diferente é o bloqueio e o uso das ruas realizado pelos blackblokers. Aqui a imediaticidade da atuação não está apenas na ausência de canais institucionais formais entre os agentes e o Estado, mas na instantaneidade em que a prática surge – de forma extremamente dramatizada e radical – e desaparece; sendo o descolamento da tática em relação à estratégia o sinal mais claro disso.

Bibliografía

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